Inácio de Antioquia e Justino, o Martir
Inácio de Antioquia (67 - 110)
Inácio foi bispo de Antioquia, esta cidade era situada no ponto de conjunção entre a atual Turquia e a Síria. Da cidade primitiva não resta mais nada. É de Antioquia que Paulo parte para plantar a mensagem da cruz na Ásia Menor e na Grécia.
Inácio tornou-se célebre por sua peregrinação forçada em cadeias, de Antioquia a Roma. Nas paradas que fazia para descanso, escrevia as comunidades que o tinham recebido ou que lhe enviara uma embaixada com saudações.
Inácio é sem dúvida, juntamente com Clemente de Roma, o primeiro escritor da Igreja, vindo do paganismo, preparado pelos filósofos gregos. Em uma época em que a primeira literatura cristã ainda permanece sob os moldes judaicos, as cartas de Inácio só conservam como herança os valores bíblicos e espirituais.
A Igreja governada pelo jovem bispo é de origem estritamente helênica. Ela é um testemunho da primeira expansão da evangelização. Este bispo, preocupado com seu rebanho e com seu martírio, não deixa de dar atenção às outras Igrejas, cujas dificuldades ele conhece.
O martírio de Inácio
Inácio escreveu algumas cartas maravilhosas e sublimes, solicitando aos cristãos de diferentes igrejas, especialmente de Roma, que não lhe impedisse o martírio. Inácio suplicou-lhes, com todo o fervor de seu coração, que o deixassem receber sua coroa, e partir agora, em sua idade avançada, de uma enfadonha vida de inquéritos judiciais para a bem-aventurança inefável do reino celestial.
Obtive do Deus Todopoderoso, escreveu ele em sua carta aos romanos, o que há longo tempo venho desejando: ir ver-vos, a vós, verdadeiros servos de Deus; e mais que isto, espero alcançar sua misericórdia. Vou a vós algemado pelo amor de Jesus Cristo, e algemado, espero chegar logo à vossa cidade para receber vosso abraço e despedidas para o fim. As coisas começaram de modo auspicioso, e eu oro sinceramente para que o Senhor remova todo impedimento ou atraso para o glorioso fim que Ele parece me haver destinado. Mas, oh! Um medo terrível arrefece-me a esperança, e vós, meus irmãos, sois a causa deste temor. Temo que o vosso amor se interponha entre mim e a minha corôa. Se vós desejásseis impedir-me de receber a coroa do martírio, ser-vos-ia fácil fazê-lo. Mas que tristeza e dor seria para mim essa bondade que me privaria da oportunidade de sacrificar a minha vida ( oportunidade que talvez eu nunca mais tivesse) permitindo que eu me vá sossegadamente ao meu fim, vós me ajudais naquilo que me é mais caro. Se, todavia, o vosso amor mal orientado, quisésseis salvar-me, estar-vos-eis pondo como os mais cruéis inimigos no próprio portal do céu, e arremessando-me de volta ao profundo e tempestuoso mar da vida, para ser novamente atirado de um lado para outro em seus vagalhões de aflição.
Se me amais com verdadeiro amor, permitir-me-eis subir ao altar do sacrifício, e vós mesmos reunir-vos-eis à minha volta, entoando hinos de agradecimento ao Pai e a Jesus Cristo, por Ele haver trazido, do leste para o oeste, de Esmirna a Roma, o bispo de Antioquia, para fazê-lo confessor de seu grande nome, e sua vítima e seu holocausto. Oh! Que feliz e abençoada a nossa sina, morrer para este mundo, e viver eternamente em Deus!
Em outro texto, ele usa estas sublimes palavras: "Deixe-me ser o alimento das feras; deixai-me ir, desse modo, a possessão de Deus. Sou o trigo de Jesus Cristo; portanto devo ser quebrado e moído pelos dentes dos animais selvagens, para que me torne seu pão imaculado e puro. Mandem aqueles animais que logo serão meu honrado sepulcro. Eu desejo e peço a Deus que eles não deixem nada de mim sobre a terra, para que quando o meu espírito voar ao descanso eterno, o meu corpo não seja uma inconveniência a ninguém. Então serei um verdadeiro discípulo de Cristo, quando o mundo não puder ver mais nada de mim. Oh! Oro a Deus para que assim seja; que eu possa ser consumido pelas bestas, e ser a vítima do seu amor.
É para solicitar o vosso auxílio que vos escrevo; não vos envio mandamentos e preceitos, como Pedro e Paulo. Eles eram apóstolos; eu. um pecador miserável. Eles eram livres; eu, um escravo sem valor. Mas se eu sofrer o martírio, serei livre. Agora que estou em cadeias por Jesus Cristo, reconheço a futilidade das coisas mundanas, e aprendi a desprezá-las. Na viagem que fiz desde a Síria, por terra e por mar, de noite e de dia, lutei e ainda luto com dez leopardos ferozes, que me pressionam de todos os lados; são os dez soldados que me mantêm algemado, e são meus guardas, que se tornam ainda piores e mais cruéis, de acordo com os benefícios que recebem. No entanto, estas coisas são para mim lições do mais sublime caráter; contudo, ainda não sou perfeito". (Inácio, Carta aos Romanos)
Embora as cartas de Inácio despertem os mais profundos sentimentos de devoção em nossa alma, trazem-nos aos olhos lágrimas de compaixão. Não resta dúvida de que ele sofreu muito em sua longa e tediosa jornada a Roma. Essa viagem deve ter levado mais de seis meses; a sua carta de Esmirna data de 24 de agosto, e ele só foi martirizado em 20 de dezembro. Era a manhã do dia 20 de dezembro, de 110 O sol já se erguera no céu, e despejava seu esplendor dourado sobre a cidade. Os soldados e o velho bispo algemado adentraram aquele portão, através do qual rolara a corrente do triunfo, e passaram muitos cativos do leste, para serem massacrados no Capitólio, como o clímax glorioso do bárbaro triunfo.
A alvoroço das vozes era como o murmúrio do mar agitado. Vindicavam com gritos ensurdecedores a sua liberdade de insultar e abusar. Em vão imaginamo-nos como pessoas do passado, para pintar as cenas do Coliseu nos dias de sua glória! Nada possuímos no âmbito de nossa experiência para comparar aos seus 100.000 espectadores festejando os assassinatos.
Repentinamente, a calma reina sobre as massas vivas; todos os olhos fixados no próximo acontecimento. Os soldados conduzem à arena um homem idoso e fraco, nunca uma vítima mais venerável foi conduzida através daquelas areias manchadas de sangue. O prefeito, tendo ouvido de sua longa viagem desde o leste, e dirigiu-lhes estas palavras: "Admiro-me de que ainda estejas vivo, após toda a fome e o sofrimento que já suportaste; agora, consente ao menos em oferecer sacrifício aos deuses, para que sejas livre da horrível morte que te ameaça, e salva-nos do pesar de ter de condenar-te".
Inácio, lançando ao representante do imperador, declarou:
Com tuas palavras brandas, desejas enganar-me e destruir-me. Sabe tu que esta vida mortal não tem atração para mim; desejo ir a Jesus, que é o pão da imortalidade e a bebida da vida eterna. Vivi inteiramente para Jesus, e a minha alma anela por Ele. Desprezo todos os teus tormentos, e lanço aos teus pés a tua liberdade oferecida.
O prefeito, enraivecido com a linguagem ousada do bispo, proferiu num tom arrogante: Já que este velho é tão orgulhoso e desdenhoso, deixai-o ser amarrado, e soltai dois leões para devorá-lo.
Inácio sorriu com alegria. Com um ato de ações de graças no coração, e uma súplica muda por forças, dirigiu-se à assembléia nestes termos: Romanos que testemunhais a minha morte não penseis que sou condenado por algum crime ou má ação. E permitido que eu vá a Deus, o que anelo com insaciável desejo; sou trigo de Deus, e devo ser moído pelos dentes das feras, a fim de tornar-me para Ele um pão branco e puro.
Caiu, então, de joelhos, cruzou os braços sobre o peito, e com os olhos erguidos ao céu, esperou calma e resignadamente pelo momento que deveria libertá-lo dos problemas desta vida, e lançar-lhe a alma em seu vôo para a eternidade. Mais um momento, e os pequenos portões das passagens subterrâneas se abrem, e dois leões saltam para a arena.
Um silêncio palpável reina no anfiteatro. As feras avançam... 0 mártir foi-se ao encontro de sua coroa. Podemos apenas transcrever as breves e tocantes palavras de seus Atos. "Sua oração foi ouvida: os leões nada deixaram a não ser os ossos mais sólidos de seu corpo".
Flávio Justino, o Mártir (100-165)
Justino foi um dos maiores escritores cristãos da Igreja Primitiva. Era homem bem versado em filosofia. Estudou as escolas filosóficas estóicas (filosofia de Zenão - rigorosa obediência à razão, desprezando o que é exterior), antes de se converter ao cristianismo. Justino tomou para si a responsabilidade de defender o cristianismo de maneira racional. Vários documentos produzidos por ele ainda subsistem.
Justino nasceu na Palestina aproximadamente no ano 100; em sua busca pela verdade estudou o estoicismo, Pitágoras, Aristóteles e Platão. Ficou impressionado ao ver a perseverança dos mártires cristãos e sua força na hora da morte. Certo dia encontrou-se com um cristão, já idoso. Justino ficou perplexo diante de sua dignidade e humildade. O homem citou várias profecias, mostrando que o caminho cristão era realmente verdadeiro. Jesus era a verdadeira expressão de Deus.
Esse encontro ocasionou grande mudança na vida de Justino, ele entregou sua vida ao Salvador, e tornou-se um dos mais importantes defensores da nobre causa da salvação. Debruçado sobre aqueles escritos proféticos, lendo os evangelhos e as cartas de Paulo, ele se tornou um cristão dedicado. Assim, nos últimos trinta anos de sua vida, viajou, evangelizou e escreveu. Desempenhou um papel muito importante no desenvolvimento da teologia da igreja, assim como da compreensão que a igreja tinha de si mesma e da imagem que apresentava ao mundo.
“Cortam-nos a cabeça, crucificam-nos, expõem-nos às feras, atormentam-nos com cadeias, com o fogo, com os suplícios mais terríveis” (Justino, Diálogo com Trifão 110).
A convicção de Justino da verdade de Cristo era tão completa que nada o afastava disso.
Justino foi preso durante a perseguição movida por Marco Aurélio. Tendo sido levado à presença de Rústico, prefeito de Roma, acusado de recusar-se a fazer sacrifício aos ídolos, foi ordenado a fazê-lo naquele instante. Justino respondeu: "Não é nenhuma injúria, obedecer aos mandamentos de nosso Salvador Jesus Cristo, nem tampouco, motivo para condenação". Assim, Justino e mais alguns irmãos foram decapitados no ano de 165.
Homem de grande conhecimento e eloquência, Justino nos deixa o exemplo de paixão pela causa e obra de Jesus Cristo. Sua dedicação em defesa do Cristianismo deixa-nos perplexos, e nos compunge a sermos fiéis, mais autênticos assim na dedicação como na defesa do ser cristão.
Ensinamentos de Justino Mártir
Sobre o batismo
“Vamos expor de que modo, renovados por Cristo, nos consagramos a Deus. Todos os que estiverem convencidos e acreditarem no que nós ensinamos e proclamamos, e prometerem viver de acordo com essas verdades, exortamo-los a pedir a Deus o perdão dos pecados, com orações e jejuns; e também nós oraremos e jejuaremos unidos a eles. Em seguida, levamo-los ao lugar onde se encontra água; ali renascem do mesmo modo que nós também renascemos: recebem o batismo da água em nome do Senhor Deus Criador de todas as coisas, de nosso Salvador Jesus Cristo e do Espírito Santo. Com efeito, foi o próprio Jesus Cristo que afirmou: Se não renascerdes, não entrareis no reino dos céus. É evidente que não se trata, uma vez nascidos, de entrar novamente no seio materno”. (Justino 1ª Apologia Cap. 61 )
O Dia do culto dos cristãos
Justino afirma que os cristãos guardavam como dia sagrado a Deus o domingo, pois foi neste dia que Jesus Cristo ressuscitou dos mortos:
“Reunimo-nos todos no dia do Sol ( primeiro dia da semana ), não só porque foi o primeiro dia em que Deus, transformando as trevas e a matéria, criou o mundo, mas também porque neste mesmo dia Jesus Cristo, nosso Salvador, ressuscitou dos mortos. Crucificaram-no na véspera do dia de Saturno; e no dia seguinte a este, ou seja, no dia do Sol, aparecendo aos seus apóstolos e discípulos, ensinou-lhes tudo o que também nós vos propusemos como digno de consideração” (Justino 1ª Apologia Cap. 66-67 ).
Descrição do culto dos cristãos
“No chamado dia do Sol ( primeiro dia da semana ), reúnem-se em um mesmo lugar todos os que moram nas cidades ou nos campos. Lêem-se as memórias dos apóstolos ou os escritos dos profétas, na medida em que o tempo permite. Terminada a leitura, aquele que preside toma a palavra para aconselhar e exortar os presentes à imitação de tão sublimes ensinamentos.
Depois, levantamo-nos todos juntos e elevamos as nossas orações; como já dissemos acima, ao acabarmos de orar, apresentam-se pão, vinho e água. Então o que preside eleva ao céu, com todo o seu fervor, orações e ações de graças, e o povo aclama: Amém! Em seguida, faz-se entre os presentes a distribuição e a partilha dos alimentos que foram consagrados, que são também enviados aos ausentes por meio dos diáconos.
Os que possuem muitos bens dão livremente o que lhes agrada. O que se recolhe é colocado à disposição do que preside. Este socorre os órfãos, as viúvas e os que, por doença ou qualquer outro motivo se acham em dificuldade, bem como os prisioneiros e os hóspedes que chegam de viagem; numa palavra, ele assume o encargo de todos os necessitados (Justino 1ª Apologia Cap. 66-67 ).
O culto de Santa Ceia dos cristãos
“Os apóstolos em suas memórias que chamamos evangelhos, nos transmitiram a recomendação que Jesus lhes fizera. Tendo ele tomado o pão e dado graças, disse: Fazei isto em memória de Mim. Isto é o Meu corpo; e tomando igualmente o cálice e dando graças, disse: Este é o Meu Sangue, e os deu somente a eles. Desde então, nunca mais deixamos de recordar estas coisas entre nós” (Justino 1ª Apologia Cap. 66-67 ).
"Designamos este alimento a Ceia. A ninguém é permitido dele participar, sem que creia na verdade de nossa doutrina, que já tenha recebido o batismo de remissão dos pecados e do novo nascimento, e viva conforme os ensinamentos de Cristo. Pois não tomamos estas coisas como pão ou bebida comum; senão, que assim como Jesus Cristo, feito carne pela palavra de Deus, teve carne e sangue para salvar-nos, assim também o alimento feito na Ceia... é como a Carne e o Sangue de Jesus encarnado. Assim nos ensinaram..." (1ª Apologias de Justino, 65-67)