Sinceridade X Verdade - Martyn Lloyd-Jones
SINCERIDADE VERSUS VERDADE
Extraído do livro: Sincero, mas Errado - Editora Fiel
Dr. David Martyn Lloyd-Jones
Quanto mais alguém considera e examina a situação presente, à luz dos ensinamentos bíblicos, mais percebe que todas as falácias populares, atinentes à vida e às suas dificuldades, são apenas modernas variantes de idéias antiqüíssimas. Já vimos quão veraz é essa declaração, enquanto considerávamos os problemas existentes na natureza humana e o que está errado no homem. Agora, ao passarmos a consi¬derar o que deve ser feito em seu favor, descobriremos, uma vez mais, que uma das teorias mais populares é justamente aquela que é desmascarada e tratada com clareza na Bíblia.
Talvez nada exista de tão comovente, na Bíblia, como o interesse, expresso pelo apóstolo Paulo, por seus compatriotas, os judeus. Ele se lamentava devido à recusa persistente e obstinada em crerem eles no evan¬gelho. Sentia também que, devido à privilegiada posição que ocupavam, o caso dos judeus era mais trágico que o de qualquer outro povo. Deus os escolhera dentre todas as nações, conferindo-lhes prerrogativas especiais. A eles tinham sido confiadas as Escrituras, e tinham sido ensinados por uma maravilhosa sucessão de pro¬fetas, a fim de que aguardassem a futura vinda de um grande Messias e Libertador. No entanto, dentre toda a humanidade, foram justamente eles que rejeitaram a Cristo e que continuaram se recusando a dar crédito ao evangelho, que fala de Cristo. Aqueles que esperavam o aparecimento do Messias não O reconheceram, quando Ele veio. Aqueles que se declaravam ansiosos por parecer justos diante de Deus rejeitaram o único meio pelo qual a humanidade pode ser justificada diante do Senhor.
Para Paulo havia apenas uma explicação para essa tragédia. O apóstolo exprimiu isso, com as seguintes palavras: "Porque lhes dou testemunho de que eles têm zelo por Deus, porém não com entendimento" (Rm 10.2). Ele admitia que os pontos de vista deles eram honestos e sinceros. O problema dos judeus não era que lhes faltasse sinceridade, mas antes, era que confiavam em sua própria sinceridade; e então, por dependerem dela, deixavam de considerar a luz e o conhecimento maiores que o evangelho poderia lhes dar, quanto ao Messias que desejavam. De igual modo, sua dificuldade não era a falta de fervor, mas a confiança em seu próprio fervor, argumentando que, em vista de serem zelosos, necessariamente estavam com a razão. "Têm zelo por Deus, porém não com entendimento." Na realidade, repeliam o conhecimento que o evangelho lhes oferecia, exatamente por causa do seu ardor pessoal. O conflito, no caso deles, era entre o zelo e o conhecimento, entre a sinceridade e a verdade.
Essa teoria deve ser considerada, pois nos oferece uma descrição exata e precisa do que acontece com grande número de pessoas, em nossa época. De fato, não hesitamos em dizer que se trata de uma perfeita descrição da tendência predominante em grande parte do pensamento religioso, tendência essa que Paulo reputava ao mesmo tempo patética e perigosa. Trata-se da tendência de igualar à sinceridade à verdade, de fazer do zelo e do conhecimento termos equivalentes. A posição não é afirmada exatamente dessa maneira, naturalmente; antes, asseveram que, se um homem é sincero e zeloso, nada mais realmente importa.
Não há dúvida que essas qualidades, o zelo e a sinceridade, estão sendo exaltadas em nossos tempos, precisamente como se fazia entre os antigos judeus, e que, modernamente, esses são os testes aplicados a todos os homens e a todas as idéias. O conhecimento está sendo depreciado, quase mesmo desprezado. O modo claro e lógico de pensar e as definições exatas não são valorizados. Doutrina e dogma são tabus, con¬siderados quase que inimigos da verdade; e até mesmo às boas ações já não se dá o mesmo destaque dado há alguns anos.
Atualmente, a sinceridade é com freqüência o único teste aplicado. Basta isso; e se uma pessoa puder mostrar que é sincera em seus pontos de vista, nada mais é exigido dela. Não se leva em conta a correção ou o erro dos pontos de vista. De fato, isso está sendo reputado como algo sem relevância. Quando alguém duvida da veracidade de alguma declaração, isso é considerado quase como um sacrilégio, produto de um espírito ou de uma mente dados à dissensão e ao legalismo. A reação a todos os comentários e questionamentos feitos é que tal pessoa é honesta em seus pontos de vista. A sinceridade é o teste supremo; e o que se requer de todos não é que defendam opiniões corretas, mas que tenham, de algum modo, uma opinião sincera. Assim é que, com freqüência, ouve-se uma frase parecida com esta, no fim de uma reunião: "Na¬turalmente, não concordei com ele, mas isso não tem importância. É evidente que ele é sincero".
Não se pode esconder que essa posição surgiu quase exclusivamente como reação a certas condições previamente existentes. Trata-se da reação moderna contra a mera teologia, contra o mero conhecimento, contra a mera moralidade. O homem moderno abomina a beatice e a hipocrisia. Ele repele aquele tipo de pessoa, que era tão comum no final do século passado, cuja cabeça estava repleta de conhecimento e de teologia, mas cujo coração estava vazio não somente da graça do Senhor Jesus Cristo, mas até mesmo da bondade comum ao ser humano. O homem moderno tem aversão por aquele tipo de pessoa cuja moralidade é tão super¬ficial como a sua pele, cuja religião parece limitar-se a apenas um dia em cada sete. Também sente que já se exibiu demais aquela forma de interesse intelectual pela religião e pela teologia, mas que jamais se expressa na vida prática. "O que necessitamos", afirma o homem moderno, "é de sinceridade; não importa quais sejam as idéias de uma pessoa, contanto que ela seja sincera". A ortodoxia sem honestidade, a moralidade sem a nobreza de caráter e a "santidade" superficial, às quais falta a sinceridade, para o homem moderno são os maiores males. Segundo ele sente, o que mais se faz mister atualmente é a genuinidade, a sinceridade, a paixão pela retidão, sem importar quais pontos de vista alguém tenha, em particular, sobre questões doutrinárias ou teológicas.
Naturalmente, há nessa posição muita coisa com que todos precisamos concordar. A sinceridade é um elemento essencial; sem ela, ninguém pode esperar chegar à verdade. A pessoa insincera não pode ser defendida. Porém, dizer que sinceridade e verdade são idênticas é cair em um erro quase tão perigoso como defender a verdade de modo insincero. A sinceridade é algo necessário; é essencial. Mas, quando se assevera, conforme muitos fazem, que nada mais realmente importa, senão a honestidade e o zelo, então o pêndulo já oscilou para o extremo oposto, o qual é tão perigoso como aquele em que viviam as pessoas do século passado, as quais consideramos culpadas de erro.
Portanto, consideremos detalhadamente essa posição moderna, especialmente à luz do que o apóstolo Paulo diz acerca de seus próprios contemporâneos, os quais, por causa de seu zelo e sinceridade, repeliam o evangelho de Jesus Cristo.
Antes de tudo, levemos em conta a falácia que está envolvida nessa tendência moderna de substituir o conhecimento pelo zelo e de exaltar a sinceridade em lugar da verdade. Quando digo falácia refiro-me, primariamente, a uma falácia intelectual e filosófica. Mesmo sem vincular seu erro à esfera particular da religião, essa tendência é faltosa e tola, quando consi¬derada em qualquer esfera ou em qualquer de suas aplicações.
Antes de tudo, indica que tais pessoas não conse¬guem perceber o verdadeiro significado e natureza do zelo e da sinceridade. Afinal de contas, no que consiste o zelo? O que significam honestidade e sinceridade? Certamente não são nem visam exprimir mais do que uma descrição da maneira como alguém realiza uma ação particular ou dirige-se a certo destino. Tais termos anunciam que a maneira do homem avançar se carac¬teriza por uma atitude radical, de todo o coração, não havendo suspeita de letargia ou de desonestidade em seu método. É evidente que tal pessoa anseia por chegar ao alvo colimado, e força cada nervo e cada músculo a fim de alcançá-lo. É nisso que consistem o zelo, a honestidade e a sinceridade.
Utilizando outra ilustração: alguém pode pregar o evangelho de maneira sincera ou insincera, um outro pode advogar uma causa política ou social de modo genuíno e honesto, ou por causa de algum interesse pessoal, ou por algum motivo oculto. Isso nada mais é que a descrição da maneira como alguém cumpre ou realiza qualquer função; não diz respeito à função como um fim em si. Certamente que o objetivo, quando alguém inicia uma viagem, não é meramente o de viajar de certa maneira específica. A pessoa não se contenta enquanto não chega a seu destino. Mas o que está sendo esquecido, hoje em dia, é precisamente a idéia de um alvo. Toda a ênfase recai sobre o zelo e a sinceridade; o modo como alguém viaja é reputado como de maior importância que o destino. A viagem se tornou um objetivo em si mesmo.
Desejo citar apenas um exemplo típico e bem conhecido sobre isso. Ao escrever sobre a busca pela verdade, Rufus M. Jones diz, definida e categorica-mente, que, se em uma de suas mãos lhe fosse oferecida a emoção e a alegria da busca pela verdade e na outra lhe fosse dada a própria verdade, sem a menor hesitação ele escolheria a primeira possibilidade.
Isso é bem típico de grande parte da atitude moderna. A ênfase toda recai sobre a procura e sobre a maneira como alguém faz as suas buscas. A busca tornou-se mais importante do que o ato de encontrar. Assim, pois, a sinceridade e o zelo são exaltados acima de tudo o mais. A viagem se tornou o objeto do desejo. O alvo é reputado como algo sem importância e, de fato, quase que como um motivo de irritação; e isso porque, quando atingimos o alvo, necessariamente termina o deleite e a alegria da busca. Que terrível perversão do pensamento, sem nada dizermos a respeito da deturpação das coisas espirituais! Os antigos padres jesuítas foram condenados por pensarem que o fim justifica os meios. Por outro lado, hoje em dia, a idéia é que os meios são a única coisa que importa e que o fim não tem qualquer utilidade. E, assim sendo, não importa qual seja nossa idéia e nosso ponto de vista final, contanto que nos mostremos sinceros.
Todavia, posso imaginar alguém apresentando a objeção de que a minha exposição não é perfeitamente justa — que modernamente a sinceridade e o zelo não são um objeto de adoração por si mesmos, mas que, antes, a sinceridade é uma garantia da verdade, e, por isso, todo o ponto de vista defendido com sinceridade é necessariamente correto. O argumento é que, se bus¬carmos sinceramente a verdade e a realidade, a própria sinceridade servirá de garantia que, por fim, chegare¬mos ao nosso alvo.
Essa objeção, contudo, deixa a posição moderna exatamente onde se encontrava antes; pois o erro dessa objeção é tão profundo como o da posição original. Trata-se do erro de pensar que uma das funções do zelo e da sinceridade é decidir o que há de certo ou de errado no alvo final, e de escolher qual a direção em que devemos avançar. Porém, conforme já vimos, essa não é uma das funções do zelo e da sinceridade, de modo algum. A finalidade dessas qualidades é ajudar-nos a chegar àquele alvo. A sinceridade e o zelo são, para os homens, o que a gasolina é para o automóvel, o que o vapor é para a máquina a vapor. São apenas expressões de poder e de modo nenhum têm compe¬tência para decidir ou determinar quais voltas, ao longo do caminho, são certas ou erradas. No entanto, é exata¬mente assim que essas virtudes estão sendo usadas em nossos dias. As pessoas dizem: "Você está vendo aquele homem? Ele defende a verdade com todo o empenho. Não deixa pedra que não seja revirada. Faz tudo quanto está ao seu alcance. Note seu zelo e sua sinceridade admiráveis". Ele defende a questão com todo o coração, e, por isso mesmo, fica entendido que deve estar com a razão e de maneira alguma pode ser criticado.
Ora, essa atitude é tão enganosa quanto se alguém disser que por estarmos viajando com rapidez por um certo caminho, à toda aceleração, necessariamente estamos percorrendo a estrada certa. Não! A velocidade e o método de viajar não garantem, sob hipótese alguma, que estamos na estrada certa. Não compete à sinceridade e ao zelo determinar se está correto ou não o nosso ponto de vista.
Mas esse ponto é visto ainda com maior clareza, quando percebemos que o zelo e a sinceridade podem estar enganados, sem que por isso deixem de ser zelo e sinceridade. Em outras palavras, precisamos lembrar que uma pessoa pode estar sinceramente errada e genuinamente equivocada.
Talvez o exemplo clássico disso seja o do próprio apóstolo Paulo. Ele nos diz repetidas vezes que, nos dias anteriores à sua conversão, quando perseguia a igreja de Deus e massacrava os cristãos, fazendo tudo ao seu alcance para exterminar a causa cristã, ele era perfeitamente sincero. Fizera tudo "com toda a boa consciência" (At 23.1). Ele não apenas pensava que estava certo, mas tinha convicção disso; e cria, do mais profundo do seu ser, que estava fazendo o que era agradável aos olhos de Deus. Era sincero e zeloso; era totalmente entregue ao que fazia. Não havia vestígio de hipocrisia ou fingimento em suas ações. Se houve um homem honesto, este foi Saulo, o fariseu, antes da sua conversão.
No entanto, a caminho de Damasco, repentina¬mente veio a entender que estava terrível e tragicamente enganado. Percebeu que todo o seu direcionamento estava errado; e imediatamente tomou novo rumo. Depois disso, trabalhou e viajou com igual entusiasmo, mas na direção exatamente oposta. A sinceridade e o zelo permaneceram inalterados, mas em um curso inteiramente diferente. Antes de sua conversão, Paulo estava sinceramente equivocado. Após a sua conversão, tornou-se sinceramente certo. Por conseguinte, o fato de que um homem é sincero não garante que ele esteja com a razão; e fazer da sinceridade o padrão e o teste final é a mesma coisa que lançar aos ventos a lógica e a clara maneira de pensar. Ora, certamente devemos admitir que muitas das maiores crueldades e dos piores excessos registrados, tanto na história antiga como na moderna, devem ser atribuídos à falsa sinceridade e ao zelo que não são governados e controlados pelo verda¬deiro conhecimento.
Em outras palavras, a fim de finalizar esse argu¬mento, o que parece estar esquecido é que podemos dizer, sobre a sinceridade, o mesmo que se tem dito sobre o fogo, naquele provérbio popular bem conhecido: "O fogo é um bom servo, mas é um mau senhor". Enquanto o fogo está sob controle, nada é mais útil do que ele. Com ele, podemos aquecer nossas salas, cozinhar as nossas refeições e realizar um número interminável de ações benéficas. Porém, uma vez que o fogo não mais esteja sob controle e torne-se o senhor da situação, leva somente à destruição e ao caos.
Podemos, também, lançar mão da ilustração de um cavalo bem cuidado, forte e fogoso. Nada é mais agradável do que montarmos tal cavalo, enquanto esti¬vermos firmes sobre a sela, segurando as rédeas com firmeza. Mas, se por acaso ele tomar as rédeas entre os dentes e disparar, a situação tornar-se-á insegura, e o incidente pode terminar em desastre.
Ora, o caso é exatamente idêntico ao que se dá com a sinceridade. Se o conhecimento estiver firmado na sela, e juntamente com a verdade, estiver no controle, nada melhor ou mais importante haverá do que a sinceridade. Mas, se entregarmos o controle à própria sinceridade, ela nos poderá fazer desviar inexoravelmente, levando-nos ao desastre. Isso sucedeu ao apóstolo Paulo, antes de sua conversão. E, segundo ele nos informa, esse era o problema dos judeus do seu tempo. Eles eram sinceros, mas não segundo o conhecimento. A sua sinceridade não era orientada. Era uma sinceridade que sofria de falta de visão e, por isso, causava destruição e os conduzia à condenação. Mas, ao recebermos o conhecimento e a direção correta, nada se faz tão essencial como a sinceridade. Todavia, quando alguém depende da pressão do vapor, na máquina, e não da bússola, para tomar a direção certa, o resultado inevitável será o naufrágio.
Em nossa época, multidões avançam a todo o vapor nessa suposta grande busca pela verdade e pela realidade. Todos se declaram sinceros e genuínos, que "defendem com denodo a verdade". Mas, em nome de Deus, indagamos: "Para onde você está indo? Você tem conhecimento verdadeiro? Sua bússola funciona? Continua de olhos fixos na estrela polar? Não julga que já é chegado o tempo de verificar o seu rumo e descobrir a sua posição exata? Você não tem consciência de certos perigos graves, que possa encontrar a qualquer momento, nessa viagem e em sua busca? Perceba o perigo de confiar exclusivamente na força. Entenda a importância absoluta do conhecimento e da verdade, da informação e da direção correta". Certamente, não existe qualquer atitude mais insensata e falsa do que confiar na sinceridade e no zelo que não são controlados pelo conhecimento.
Consideremos, por igual modo, a futilidade dessa posição moderna. Meditemos no terrível desperdício de energias que há quando a sinceridade e o zelo não são orientados pelo conhecimento e pela verdade. Naturalmente que essa situação se faz presente em todas as áreas. Se voltarmos a nossa atenção para as experi¬ências científicas, por exemplo, veremos que confiar no zelo e na sinceridade em meio à busca por resultados, sem que se tenha uma certa soma de conhecimentos, é obviamente inútil e até altamente perigoso. Em qual¬quer área da vida, o conhecimento é essencial, e o mero fervor, à parte do conhecimento, não pode pro¬duzir os resultados desejados. Ora, se compreendemos que, no final das contas, temos de nos preocupar com Deus e em sermos agradáveis a Ele, quão infinitamente mais importante é entender, antes de fazermos qualquer coisa, que o conhecimento de sua vontade e de seu propósito para nós é absolutamente vital.
Essa é uma verdade que pode ser demonstrada de duas formas principais. O argumento de Paulo, no tocante aos pontos de vista de seus contemporâneos, foi que nada conseguiam senão estabelecer a sua própria justiça, visto que confiavam no seu zelo e sinceridade à parte do conhecimento. A causa desse erro, segundo afirmou o apóstolo, é que ignoravam a justiça de Deus; eram ignorantes não só do caminho divino da salvação, mas também daquilo que Deus exige. O próprio Senhor Jesus, certa vez, fez precisamente essa acusação contra os fariseus, quando disse: "Vós sois os que vos justificais a vós mesmos diante dos homens, mas Deus conhece o vosso coração; pois aquilo que é elevado entre homens é abominação diante de Deus" (Lc 16.15).
Poderia haver qualquer coisa tão inútil quanto essa circunstância? Talvez tal situação possa ser vista mais claramente no caso dos judeus dos dias de nosso Senhor e de Paulo. Apresentavam-se eles com todo o seu zelo e sinceridade, com suas boas obras e sua moralidade. Abnegavam-se e sofriam; oravam e jejuavam, contribuindo com seus bens para alimentar os pobres. No entanto, suas boas obras não tinham qualquer valor, pelo motivo simples de não serem o que Deus pedia deles. Estabeleciam os seus próprios padrões, agiam conforme suas próprias idéias e tradições e, então, eram capazes de enumerar grandes realizações e grande quantidade de atos de justiça. Contudo, aquilo não tinha valor. Não passava de justiça própria; não era justiça requerida por Deus. E o que tornava ainda mais ridícula a questão é que tinham persuadido a si mesmos de que faziam tudo isso para o agrado de Deus. Seu propósito, afirmavam, era o de agradar a Deus e de se justificarem aos olhos dEle; no entanto, em última análise, praticavam tudo a fim de agradarem a si mesmos. E tudo por não quererem ouvir o que dissera o próprio Deus e por confiarem em seu próprio zelo, em suas próprias idéias, recusando-se a serem iluminados quanto àquilo que Deus, de fato, requeria.
Ora, pensemos. Não existem, em nossos dias, os que fazem a mesma coisa? Não existem aqueles que ignoram a Palavra de Deus, que se recusam a levar em conta o evangelho, com sua luz e seu conhecimento? Que se conservam afastados da casa de Deus e de toda a forma de instrução no tocante a essas questões; que argumentam que tudo quanto é mister é que alguém seja sincero, honesto em seus negócios, que se dedique à caridade, que seja amigável e afável?
A esses precisamos dizer o mesmo que Paulo disse a seus contemporâneos — ao fazerem tudo isso estão simplesmente estabelecendo a sua própria justiça. Não pomos em dúvida a sinceridade ou a honestidade deles. Admitimos neles ambas as qualidades, tal como fez Paulo no caso dos antigos fariseus. A pergunta vital, entretanto, é: Qual é o valor de tudo isso? Não se trata do caminho de Deus. Não se trata da justiça do modo como Deus a vê, mas apenas da justiça própria. Certamente, a essência da sabedoria é que, antes de começarmos a agir ou de procurarmos agradar a Deus, devemos descobrir o que Deus tem a dizer sobre a questão. Antes de tudo, devemos conhecer o que Deus pensa sobre a justiça e quais as exigências dEle.
Todavia, os homens e as mulheres de nossos dias, tal como os judeus da antigüidade, aceitam ordens de toda a parte, exceto da Palavra de Deus. Dependem das afirmações de alguns escritores modernos e vivem de acordo com suas próprias idéias, não segundo os ensinamentos de Jesus de Nazaré, o Filho de Deus. Que continuem, que prossigam nesse caminho, cega e ignorantemente. Que teimem em estabelecer a sua própria justiça, rejeitando o evangelho de Jesus Cristo; e por certo chegará o dia quando descobrirão que "aquilo que é elevado entre homens é abominação diante de Deus" (Lc 16.15).
A pergunta vital a ser feita, por conseguinte, é: A quem estamos agradando, na realidade? A nós mesmos ou a Deus? Temo-nos submetido ao seu caminho? Podemos afirmar que temos sujeitado a Ele nossa von¬tade, entregando-a a Ele? Em caso contrário, todos os nossos atos de justiça serão como "trapo da imundícia" (Is 64.6), e em nada nos ajudarão.
A segunda maneira pela qual podemos demonstrar a futilidade da confiança no zelo, que não leva em conta o conhecimento, é lembrarmo-nos do padrão que foi estabelecido por Deus. Paulo lembrou aos seus contemporâneos o que disse Moisés, ao transmitir a lei aos judeus: "O homem que praticar a justiça decorrente da lei viverá por ela" (Rm 10.5). Essas palavras poderiam ser traduzidas da seguinte forma: "Todo que cumprir a lei, viverá por ela". Deus entregou a sua lei, a sua perspectiva acerca da retidão; e, em essência, foi isto o que Ele disse: "Se guardares tudo isso, terás obedecido aos meus mandamentos. É isso o que eu exijo. Essa é a única maneira de agradar-me".
No que consiste essa maneira de agradar a Deus? Examinemos a questão em profundidade. Falamos em agradar a Deus mediante os nossos próprios esforços sinceros. Pois bem, consideremos o que deveríamos fazer. Pode o homem fazer expiação por seus próprios erros e pecados passados? Pode ele apagar as suas próprias transgressões? Pode ele aguçar a sua consci¬ência e limpar a sua memória? Mais do que isso, pode ele viver no presente, de modo que verdadeiramente se satisfaça? Pode ele resistir às tentações? Sempre vive o homem à altura de seus próprios padrões? Pode ele controlar os seus pensamentos, os seus desejos, as suas inclinações e imaginações, bem como cada uma de suas ações? Em outras palavras, por meio de seus mais intensos esforços, pode o homem, e consegue ele, ser bem-sucedido, vivendo, realmente, segundo suas próprias regras de vida?
Consideremos o padrão divino. Leiamos a lei, conforme foi dada aos filhos de Israel, os Dez Manda¬mentos e a lei moral, que Saulo reconheceu não poder cumprir, apesar de todo o seu zelo, quando percebeu o verdadeiro significado da lei. Examinemos, em seguida, o Sermão da Montanha e as várias afirmativas de nosso Senhor acerca da santidade de Deus. Ponderemos, então, a vida perfeita de Jesus. É isso o que temos de fazer. Essa é a retidão que teríamos de alcançar. Pode alguém realizar tal feito? Podem todas as boas intenções, toda a sinceridade e todo o zelo de que alguém é capaz, prover poder suficiente para escalar tão grandes alturas? Esse é o monte que temos de subir — o monte da santidade de Deus. Somos informados que, sem a santidade, ninguém jamais verá ao Senhor (Hb 12.14). Haverá alguém capaz de produzir tal santidade? Haverá poder suficiente, na minúscula máquina de nossa vida, para conduzir-nos a tão vertiginosas alturas? Indaguemos ao apóstolo Paulo. Indaguemos a Agosti¬nho, a Lutero e a João Wesley. Façamos perguntas a todas as almas mais nobres que o mundo já viu, a todos os de espírito mais sincero e mais zeloso que a huma¬nidade já conseguiu produzir. Então, qual poderoso coro e em voz uníssona, eles responderão, dizendo:
Não são os labores de minhas mãos
Que podem cumprir as exigências de tua lei.
Se meu zelo desconhecesse descanso,
Se minhas lágrimas para sempre se vertessem,
Nem assim seria expiado um único pecado.
Tu precisas salvar e Tu somente!
Ora, se eles fracassaram, quem poderia obter sucesso? Oh, a insensatez, a futilidade, a cegueira e a presunção de toda essa atitude! O que há de melhor em nós e tudo que somos não bastam. E salientemos que, se isso acontece com os sinceros e zelosos, quão mais inexoravelmente condenados ao fracasso são aqueles que não fazem qualquer esforço ou que continuam a viver no pecado, impensada e desatentamente, e que, na realidade, de forma nenhuma se importam com Deus!
Consideremos, por fim, a tragédia dessa posição moderna. Essa tragédia consiste em que toda essa mi¬séria é desnecessária, em face do conhecimento que está disponível. O que levou o apóstolo Paulo a sentir isso com tanta intensidade foi, sem dúvida, que ele mesmo passara pela experiência, conforme nos diz em várias partes de seus escritos e sermões. Ele sabia o que significa alguém confiar em seu próprio zelo e sinceridade e em seus próprios esforços. Conhecera perfeitamente o esforço e a fadiga, o jejum e todos os grandes labores. Mas, conhecera, também, a sensação de incapacidade. Soubera o que significava não obter satisfação. Foi então que experimentou aquela gloriosa libertação, advinda pelo conhecimento do evangelho.
No entanto, ali estavam seus compatriotas, que ainda palmilhavam pelo caminho antigo, culpados ainda da antiga falácia, esforçando-se ainda por realizar o impossível. O apóstolo os contemplava e via o grande zelo deles e seu imenso esforço. "Quão entristecedor e quão trágico!", clamava ele; "eles têm zelo e sinceri¬dade, mas isso não tem qualquer valor. Procuram justificar a si mesmos, mas nunca poderão fazê-lo; enquanto assim tentam e falham, deliberadamente rejeitam o conhecimento que lhes daria, na realidade, tudo quanto desejam, e mais ainda". Já era lamentável que toda aquela energia e esforço se reduzissem a total desperdício; mas a tragédia se tornava ainda maior e infinitamente mais profunda, quando se pensava naquilo que eles poderiam ser, se ao menos aceitassem o evangelho. Não somente fracassavam, mas também rejeitavam, terminantemente, tornarem-se bem-sucedidos. Preferiam confiar em si mesmos, em seu próprio zelo e em seus próprios esforços, fracassando, ao invés de se entregarem confiadamente a Jesus Cristo, para serem salvos. Tanto desejavam fazer as coisas por si mesmos que rejeitavam o oferecimento divino da salvação eterna, como uma dádiva. Era algo posto ao alcance deles, oferecido pelos apóstolos e por outros que pregavam o evangelho, o qual afirma que "o fim da lei é Cristo, para justiça de todo aquele que crê" (Rm 10.4). Bastava-lhes crer que Jesus de Nazaré era o Filho de Deus, que Jesus morrera a fim de fazer expiação por nossos pecados e ressuscitara dentre os mortos, a fim de nos justificar; e eles se veriam justos aos olhos de Deus, recebendo perdão para seus pecados. Diziam querer estar corretos diante de Deus; no entanto, recusavam, deliberadamente, o único meio de alguém ver corrigida a sua posição diante de Deus.
O que se pode dizer, entretanto, acerca do homem moderno? Não se encontra ele em situação idêntica? Não está ele confiando em si mesmo a fim de salvar-se, através de sua sinceridade e de seus esforços pessoais? Por que razão continua ele rejeitando o evangelho concernente a Jesus Cristo, à sua morte expiatória e à sua gloriosa ressurreição? Reflitamos, uma vez mais, na total insensatez e futilidade dessa posição moderna. Contemplemos de novo a tarefa com que nos defrontamos e o que ela exige de nós. Trata-se de algo inteiramente impossível para o homem, se este conta tão somente com os seus próprios esforços. Procuremos pensar no que significa estar na presença de Deus; e, se o leitor puder perceber, em qualquer extensão, o que isso quer dizer, então será compelido a concordar com aquele que escreveu:
Luz eterna! Luz eterna! Quão pura deve ser a alma, Quando, sob tua luz perscrutadora, Não retrocede, mas, com calmo deleite, Pode ainda viver e olhar para Ti!
Oh, como poderei eu, cuja esfera nativa É negra, cuja mente é embotada, Comparecer diante do Inefável, Suportando, com meu espírito desnudo, Aquele Raio de Luz não-criado?
Como é que alguém poderia ser elevado à perfeita pureza? Como é que todo o nosso zelo e toda a nossa sinceridade poderiam levar-nos até ali? O caminho ímpar e único é esboçado na terceira estrofe:
Há um caminho para o homem subir Àquela habitação sublime: Há uma oferta e um sacrifício, Há as energias do Espírito Santo, Um Advogado diante de Deus.
O Filho de Deus veio a fim de morrer por nós e por nossos pecados. Agora Ele se oferece para revestir-nos de sua própria retidão, para apresentar-nos inculpáveis perante Deus, na eternidade. Não há necessidade de nos esgotarmos mais ainda em esforços vãos. Não há mister de uma heróica e mui aplaudida procura por Deus. Cumpre-nos apenas deixar nossos pecados com Jesus, porquanto Ele é a propiciação pelos nossos pecados e pelos pecados do mundo inteiro (1 Jo 2.2). Tudo quanto há em nós ainda não basta. Mas Cristo é todo-suficiente. O zelo e a sinceridade, sem o conhecimento que vem somente por intermédio de Cristo, são vãos e inúteis. Mas, "se, com a tua boca, confessares a Jesus como Senhor e, em teu coração, creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos serás salvo" (Rm 10.9).