Reflexões, santo Agostinho
Quem foi santo Agostinho?
O mais profundo filósofo da era patrística e um dos maiores gênios teológicos de todos os tempos foi santo Agostinho (Aurelius Augustinus 354-431) foi bispo da cidade de Hipona, cuja influência plasmou a Idade Média.
“ NA VIGÍLIA DA PÁSCOA”
O bem-aventurado apóstolo Paulo, exortando-nos a que o imitemos, dá entre outros sinais de sua virtude o seguinte: “freqüente nas vigílias” [2Cor 11,27].
Com quanto maior júbilo não devemos também nós vigiar nesta vigília, que é como a mãe de todas as santas vigílias, e na qual o mundo todo vigia?
Não o mundo, do qual está escrito: “Se alguém amar o mundo, nele não está a caridade do Pai, pois tudo o que há no mundo é concupiscência dos olhos e ostentação do século, e isto não procede do pai” [1Jo 2,15].
Sobre tal mundo, isto é, sobre os filhos da iniqüidade, reinam o demônio e seus anjos. E o Apóstolo diz que é contra estes que se dirige a nossa luta: “Não contra a carne e o sangue temos de lutar, mas contra os principados e as potestades, contra os dominadores do mundo destas trevas” [Ef 6,12].
Ora, maus assim fomos nós também, uma vez; agora, porém, somos luz no Senhor. Na Luz da Vigília resistamos, pois, aos dominadores das trevas.
Não é, portanto, esse o mundo que vigia na solenidade de hoje, iras aquele do qual está escrito: “Deus estava reconciliando consigo o mundo, em Cristo, não lhe imputando os seus pecados” [2Cor 5,19].
E é tão gloriosa a celebridade desta vigília, que compele a vigiarem na carne mesmo os que, no coração, não digo dormirem, mas até jazerem sepultos na impiedade do tártaro. Vigiam também eles esta noite, na qual visivelmente se cumpre o que tanto tempo antes fora prometido: “E a noite se iluminará como o dia” [Sl 138,12]. Realiza-se isto nos corações piedosos, dos quais se disse: “Fostes outrora trevas, mas agora sois luz no Senhor”. Realiza-se isto também nos que zelam por todos, seja vendo-os no Senhor, seja invejando ao Senhor. Vigiam, pois, esta noite, o mundo inimigo e o mundo reconciliado. Este, liberto, para louvar o seu Médico; aquele, condenado, para blasfemar o seu juiz. Vigia um, nas mentes piedosas, ferventes e luminosas; vigia o outro, rangendo os dentes e consumindo-se. Enfim, ao primeiro é a caridade que lhe não permite dormir, ao segundo, a iniqüidade; ao primeiro, o vigor cristão, ao segundo o diabólico. Portanto, pelos nossos próprios inimigos sem o saberem eles, somos advertidos de como devamos estar hoje vigiando por nós, se por causa de nós não dormem também os que nos invejam.
Dentre ainda os que não estão assinalados com o nome de cristãos, muitos são os que não dormem esta noite por causa da dor, ou por vergonha. Dentre os que se aproximam da fé, há os que não dormem por temor. Por motivos vários, pois, convida hoje à vigília a solenidade (da Páscoa), Por isso, como não deve vigiar com alegria aquele que é amigo de Cristo, se até o inimigo o faz, embora contrariado? Como não deve arder o cristão por vigiar, nessa glorificação tão grande de Cristo, se até o pagão se en- vergonha de dormir? Como não deve vigiar em sua solenidade, o que já ingressou nesta grande Casa, se até o que apenas pretende nela ingressar já vigia?
Vigiemos, e oremos; para que tanto exteriormente quanto interiormente celebremos esta Vigília. Deus nos falará durante as leituras; falemo-lhe também nós em nossas preces. Se ouvimos obedientemente as suas palavras, em nós habita Aquele a quem oramos.
“SOBRE A RESSURREIÇÃO DE CRISTO, SEGUNDO SÃO MARCOS”
A ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo lê-se estes dias, como é costume, segundo cada um dos livros do santo Evangelho. Na leitura de hoje ouvimos Jesus Cristo censurando os discípulos, primeiros membros seus, companheiros seus porque não criam estar vivo aquele mesmo por cuja morte choravam. Pais da fé, mas ainda não fiéis; mestres - e a terra inteira haveria de crer no que pregariam, pelo que, aliás, morreriam - mas ainda não criam. Não acreditavam ter ressuscitado aquele que haviam visto ressuscitando os mortos. Com razão, censurados: ficavam patenteados a si mesmos, para saberem o que seriam por si mesmos os que muito seriam graças a ele.
E foi deste modo que Pedro se mostrou quem era: quando iminente a Paixão do Senhor, muito presumiu; chegada a Paixão, titubeou. Mas caiu em si, condoeu-se, chorou, convertendo-se a seu Criador.
Eis quem eram os que ainda não criam, apesar de já verem. Grande, pois, foi a honra a nós concedida por aquele que permitiu crêssemos no que não vemos! Nós cremos pelas palavras deles, ao passo que eles não criam em seus próprios olhos.
A ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo é a vida nova dos que crêem em Jesus, e este é o mistério da sua Paixão e Ressurreição, que muito devíeis conhecer e celebrar. Porque não sem motivo desceu a Vida até a morte. Não foi sem motivo que a fonte da vida, de onde se bebe para viver, bebeu desse cálice que não lhe convinha. Por que a Cristo não convinha a morte.
De onde veio a morte?
Vamos investigar a origem da morte. O pai da morte é o pecado. Se nunca houvesse pecado ninguém morreria. O primeiro homem recebeu a lei de Deus, isto é, um preceito de Deus, com a condição de que se o observasse viveria e se o violasse morreria. Não crendo que morreria, fez o que o faria morrer; e verificou a verdade do que dissera quem lhe dera a lei. Desde então, a morte. Desde então, ainda, a segunda morte, após a primeira, isto é, após a morte temporal a eterna morte. Sujeito a essa condição de morte, a essas leis do inferno, nasce todo homem; mas por causa desse mesmo homem, Deus se fez homem, para que não perecesse o homem. Não veio, pois, ligado às leis da morte, e por isso diz o Salmo: “Livre entre os mortos” [Sl 87].
Concebeu-o, sem concupiscência, uma Virgem; como Virgem deu-lhe à luz, Virgem permaneceu. Ele viveu sem culpa, não morreu por motivo de culpa, comungava conosco no castigo mas não na culpa. O castigo da culpa é a morte. Nosso Senhor Jesus Cristo veio morrer, mas não veio pecar; comungando conosco no castigo sem a culpa, aboliu tanto a culpa como a castigo. Que castigo aboliu? O que nos cabia após esta vida. Foi assim crucificado para mostrar na cruz o fim do nosso homem velho; e ressuscitou, para mostrar em sua vida, como é a nossa vida nova. Ensina-o o Apóstolo: “Foi entregue por causa dos nossos pecados, ressurgiu por causa da nossa justificação” [Rm 4,25].
Como sinal disto, fora dada outrora a circuncisão aos patriarcas: no oitavo dia todo indivíduo do sexo masculino devia ser circuncidado. A circuncisão fazia-se com cutelos de pedra: porque Cristo era a pedra. Nessa circuncisão significava-se a espoliação da vida carnal a ser realizada no oitavo dia pela Ressurreição de Cristo. Pois o sétimo dia da semana é o sábado; no sábado o Senhor jazia no sepulcro, sétimo dia da semana. Ressuscitou no oitavo. A sua Ressurreição nos renova. Eis por que, ressuscitando no oitavo dia, nos circuncidou.
É nessa esperança que vivemos. Ouçamos o Apóstolo dizer. “Se ressuscitasses com Cristo...” [Cl 3,1] Como ressuscitamos, se ainda morremos? Que quer dizer o Apóstolo: “Se ressuscitasses com Cristo?” Acaso ressuscitariam os que não tivessem antes morrido? Mas falava aos vivos, aos que ainda não morreram ... os quais, contudo, ressuscitaram: que quer dizer?
Vede o que ele afirma: “Se ressuscitasses com Cristo, procurai as coisas que são do alto, onde Cristo está assentado à direita de Deus, saboreai o que é do alto, não o que está sobre a terra. Porque estais mortos!”
É o próprio Apóstolo quem está falando, não eu. Ora, ele diz a verdade, e, portanto, digo-a também eu... E por que também a digo? “Acreditei e por causa disto falei” [Sl 115].
Se vivemos bem, é que morremos e ressuscitamos. Quem, porém, ainda não morreu, também não ressuscitou, vive mal ainda; e se vive mal, não vive: morra para que não morra. Que quer dizer: morra para que não morra? Converta-se, para não ser condenado.
“Se ressuscitasses com Cristo”, repito as palavras do Apóstolo, “procurai o que é do alto, onde Cristo está assentado à direita de Deus, saboreai o que é do alto, não o que é da terra. Pois morrestes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, que é a vossa vida, aparecer, então também aparecereis com ele na glória”. São palavras do Apóstolo. A quem ainda não morreu, digo-lhe que morra; a quem ainda vive mal, digo-lhe que se converta. Se vivia mal, mas já não vive assim, morreu; se vive bem, ressuscitou.
Mas, que é viver bem? Saborear o que está no alto, não o que sobre a terra. Até quando és terra e à terra tornarás? Até quando lambes a terra? Lambes a terra, amando-a, e te tornas inimigo daquele de quem diz o Salmo: “os inimigos dele lamberão a terra” [Sl 79,9].
Que éreis vós? Filhos de homens. Que sois vós? Filhos de Deus.
Ó filhos dos homens, até quando tereis o coração pesado? Por que amais a vaidade e buscais a mentira? Que mentira buscais? O mundo.
Quereis ser felizes, sei disto. Dai-me um homem que seja ladrão, criminoso, fornicador, malfeitor, sacrílego, manchado por to- dos os vícios, soterrado por todas as torpezas e maldades, mas não queira ser feliz. Sei que todos vós quereis viver felizes, mas o que faz o homem viver feliz, isso não quereis procurar. Tu, aqui, buscas o ouro, pensando que com o ouro serás feliz; mas o ouro não te faz feliz. Por que buscas a ilusão? E com tudo o que aqui procuras, quando procuras mundanamente, quando o fazes amando a terra, quando o fazes lambendo a terra, sempre visas isto: ser feliz. Ora, coisa alguma da terra te faz feliz. Por que não cessas de buscar a mentira? Como, pois, haverás de ser feliz? “Ó filhos dos homens, até quando sereis pesados de coração, vós que onerais com as coisas da terra o vosso coração?” [Sl 4,3] Até quando foram os homens pesados de coração? Foram-no antes da vinda de Cristo, antes que ressuscitasse o Cristo. Até quando tereis o coração pesado? E por que amais a vaidade e procurais a mentira? Querendo tornar-vos felizes, procurais as coisas que vos tornam míseros! Engana-vos o que descaiais, é ilusão o que buscais.
Queres ser feliz? Mostro-te, se te agrada, como o serás. Continuemos ali adiante (no versículo do Salmo): “Até quando sereis pesados de coração? Por que amais a vaidade e buscais a mentira?” “Sabei” - o quê? – “que o Senhor engrandeceu o seu Santo” [Sl 4,3].
O Cristo veio até nossas misérias, sentiu a fone, a sede, a fadiga, dormiu, realizou coisas admiráveis, padeceu duras coisas, foi flagelado, coroado de espinhos, coberto de escarros, esbofeteado, pregado no lenho, traspassado pela lança, posto no sepulcro; mas no terceiro dia ressurgiu, acabando-se o sofrimento, morrendo a morte. Eia, tende lá os vossos olhos na ressurreição de Cristo; porque tanto quis o Pai engrandecer o seu Santo, que o ressuscitou dos mortos e lhe deu a honra de se assentar no Céu à sua direita. Mostrou-te o que deves saborear se queres ser feliz, pois aqui não o poderás ser. Nesta vida não podes ser feliz, ninguém o pode.
Boa coisa a que desejas, mas não nesta terra se encontra o que desejas. Que desejas? A vida bem-aventurada. Mas aqui não reside ela.
Se procurasses ouro num lugar onde não houvesse, alguém, sabendo da sua não existência, haveria de te dizer: “Por que estás a cavar? Que pedes à terra? Fazes uma fossa na qual hás de apenas descer, na qual nada encontrarás!”
Que responderias a tal conselheiro? “Procuro ouro”. Ele te diria: “Não nego que exista o que descias, mas não existe onde o procuras”.
Assim também, quando dizes: “Quero ser feliz”. Boa coisa queres, mas aqui não se encontra. Se aqui a tivesse tido o Cristo, igualmente a teria eu. Vê o que ele encontrou nesta região da tua morte: vindo de outros paramos, que achou aqui senão o que existe em abundância? Sofrimentos, dores, morte. Comeu contigo do que havia na cela de tua miséria. Aqui bebeu vinagre, aqui teve fel. Eis o que encontrou em tua morada.
Contudo, convidou-te à sua grande mesa, à mesa do Céu, à mesa dos anjos, onde ele é o pão. Descendo até cá, e tantos males recebendo de tua cela, não só não rejeitou a tua mesa, mas prometeu-te a sua.
E que nos diz ele?
“Crede, crede que chegareis aos bens da minha mesa, pois não recusei os males da vossa”.
Tirou-te o mal e não te dará o seu bem? Sim, da-lo-á. Pro- meteu-nos sua vida, mas é ainda mais incrível o que fez: ofereceu-nos a sua morte. Como se dissesse: “À minha mesa vos convido. Nela ninguém morre, nela está a vida verdadeiramente feliz, nela o alimento não se corrompe, mas refaz e não se acaba. Eia para onde vos convido, para a morada dos anjos, para a amizade do Pai e do Espírito Santo, para a ceia eterna, para a fraternidade comigo; enfim, a mim mesmo, à minha vida eu vos conclamo! Não quereis crer que vos darei a minha vida? Retende, como penhor a minha morte”.
Agora, pois, enquanto vivemos nesta carne corruptível, mor- ramos com Cristo pela conversão dos costumes, vivamos com Cristo pelo amor da justiça.
Não haveremos de receber a vida bem-aventurada senão quando chegarmos àquele que veio até nós, e quando começarmos a viver com aquele que por nós morreu.
DO COMENTÁRIO AO EV. DE S. JOÃO (tract. XXIV)
A linguagem dos milagres
Os milagres realizados por Nosso Senhor Jesus Cristo são obras divinas e convidam o espírito humano a elevar-se das coisas visíveis ao conhecimento de Deus. E como Deus não é de natureza que possa ser visto pelos olhos do corpo; e como, de outro lado, os milagres que ele realiza ao governar e administrar a Criação, tornaram-se tão comuns pela sua freqüência, que ninguém presta atenção à admirável e espantosa ação de Deus na menor semente, ele reservou-se, em sua misericórdia, a realização de certos fatos, em momentos oportunos, fora do curso habitual da natureza. Assim os homens passam a ficar admirados, presenciando fatos raros, embora não maiores do que os que se consideraram vulgares, em razão da assiduidade com que se realizam.
Governar todo o mundo é maior maravilha do que saciar cinco mil homens com cinco pães. Todavia, ninguém se admira com aquilo, mas se enche de admiração por isto, não porque seja maior, mas por- que não é freqüente.
Quem sustenta ainda hoje o universo inteiro, se não aquele que, a partir de poucas sementes, Multiplica as searas? Há aqui uma operação divina. A multiplicação de poucos grãos, de que resulta a produção das searas, é feita pelo mesmo que, nas suas mãos, multiplicou os cinco pães.
Nas irão de Cristo estava esse poder. Os cinco pães eram, de certo modo, sementes que, se não foram lançadas à terra, foram multiplicadas por aquele que fez a terra.
Foi, pois, apresentado aos sentidos um meio de, e elevar o espírito, foi dada aos olhos uma ocasião de se exercitar a inteligência, e de nos fazer contemplar, através de obras visíveis, o Deus invisível.
Mas não é a única coisa que devemos considerar nos milagres de Cristo. Perguntemos aos próprios milagres o que eles nos dizem de Cristo: se soubermos compreendê-los, veremos que eles têm a sua linguagem.
Cristo é o Verbo de Deus, e todo ato realizado pelo Verbo é para nós uma palavra.
Já notamos, pela narração feita no evangelho, a grandeza deste milagre, a multiplicação dos pães. Investiguemos agora a sua profundeza. Não nos deleitemos apenas com a aparência exterior do fato, perscrutemos seu segredo, pois o fato externo tem alguma coisa de íntimo.
Vemos, contemplamos, alguma coisa de grande, de sublime, e de inteiramente divino, pois só Deus o pode realizar, e então, pela consideração da obra, somos levados a louvar o autor. Se víssemos, em qualquer parte, uma carta muito bem escrita, não nos bastaria elogiar o copista que desenhou as letras com tanta beleza e perfeição, mas deveríamos ler o que elas exprimem. Da mesma forma, quem observa o fato, agrada-se com sua beleza, e admira seu autor; mas quem compreende o sentido faz por assim dizer a sua leitura. Uma coisa é ver uma pintura, contentar-se com ver e louvar esse trabalho. já o mesmo não se dá cem uma carta, pois somos convidados a ler o que ela diz. Quando vês uma carta e não a sabes ler, perguntas: “que está escrito aqui?” já vês algo, e todavia ainda perguntas. E aquele a quem pedes o entendimento do que vês te mostrará algo mais. Ele tem um poder de visão, tu tens outro. Será que não vês como ele os caracteres? E, no entanto, não conheces como ele os sinais. Vês e admiras; ele vê, admira e compreende...
COMENTÁRIO AO EVANGELHO DE SÃO JOÃO
“Não vós me escolhesses, eu vos escolhi” [Jo 15,16]. Eis a inefável graça! Que éramos nós quando não tínhamos ainda escolhido a Cristo, e por isso não o amávamos? Como poderia amá-lo aquele que não o escolheu? Acaso já ocorria conosco o que se canta no Salmo: “escolhi, antes, ser humilde na casa do Senhor do que habitar nas moradas dos pecadores” [Sl 83,11]? Não, decerto. Que éramos, senão iníquos e perdidos? Nem sequer tínhamos acreditado nele, para sermos por ele escolhidos. Se nós escolhemos já acreditando nele, eram escolhidos os que escolhia. Ele disse, porém: “não fostes vós que me escolhesses”. Porque foi “a sua misericórdia que se antecipou a nós” [Sl 58,11].
Por aí se vê quanto é destituída de razão a maneira de raciocinar dos que defendem a presciência de Deus contra a graça de Deus. Dizem que fomos escolhidos “antes da constituição do mundo” [Ef 1,4], porque Deus previu que havíamos de ser bons, e não que ele mesmo nos haveria de fazer bens. Ora, não é isto e que diz ele, quando diz: “Não fostes vós que me escolhesses”. Se nos tivesse escolhido porque previra que havíamos de ser bons, teria igualmente previsto que nós primeiramente o havíamos de escolher. Não podíamos ser bons de outro modo. a não ser que se chamasse bom quem não escolheu o bem.
Que escolheu ele nos que não são bons? Não foram escolhidos por terem sido bons. Nunca seriam bons se não tivessem sido escolhidos. Se sustentarmos que já havia méritos, a graça já não seria graça.
A escolha é obra da graça, como diz o Apóstolo: “no tempo presente subsiste um resto, por causa da escolha da graça” [Rm 11,5]. E acrescenta: “se isto foi pela graça, não foi pelas obras; de outra sorte, a graça já não seria graça”.
Ouve-me, ó ingrato, ouve-me! “Não fostes vós que me escolhestes, mas eu que vos escolhi”. Não tens razão para dizer: fui escolhido porque já acreditava. Se acreditavas nele, já o tinhas escolhido. Mas ouve: “Não fostes vós que me escolhesses”. Não tens razão para dizer: antes de acreditar, já realizava boas ações, e por isso fui escolhido. Se o Apóstolo diz: “o que não procede da fé é pecado” [Rm 14,23], que obras boas podem existir anteriores à fé? Ao ouvir dizer: “Não fostes vós que me escolhesses”, que devemos pensar? Que éramos maus e fomos escolhidos para nos tornarmos bons pela graça de quem nos escolheu. A graça não teria razão de ser se os méritos a precedessem. Mas a graça é graça. Não encontrou méritos, foi a causa dos méritos. Vede, caríssimos, como o Senhor não escolhe os bons mas escolhe para fazer bons.
“Eu vos escolhi e vos constituí para que vades e produzais frutos, e o vosso fruto permaneça” [Jo 15,16].
Referira-se a esse fruto quando dissera: “sem mim nada podeis fazer”. Escolheu, pois, e constituiu-nos para irmos e produzir os fruto. Não tínhamos qualquer fruto que fosse a razão de ser de nossa eleição. “Para que vades e produzais fruto'. Vamos para produzir. Ele é o caminho por onde vamos, e onde nos colocou para que vamos. Em tudo se antecipou a nós a sua misericórdia. “E para que vosso fruto permaneça, a fim de que tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, ele vo-lo conceda” [Jo 15,16].
Permaneça, pois, o amor. Ele mesmo será a nosso fruto. O amor agora existe em desejo e não em plena abundância, mas pelo próprio desejo que alimentarmos em nós, tudo o que pedirmos em nome do Filho unigênito no-lo concederá o Pai. Não vamos julgar que pedimos em nome do Salvador. Só podermos pedir em nome do Salvador o que convém à nossa salvação.
[...]
Constituiu-nos em situação de produzirmos fruto, isto é, de nos amarmos mutuamente. Nunca poderíamos produzir este fruto são a sua cooperação, assim como os ramos nada podem produzir sem a videira. A caridade, portanto, tal como a definiu o Apóstolo: “nascida de um coração puro, da boa consciência e da fé não fingida” [1Tm 1,5] é o nosso fruto. É como ela que nos amamos uns aos outros e que amamos a Deus.
Nunca poderíamos amar-nos mutuamente com verdadeiro amor se não amássemos a Deus. Ama o próximo como a si mesmo aquele que ama a Deus. Se não ama a Deus não se ama a si mesmo.
“Nestes dois mandamentos se compendiam toda a - Lei e os Profetas” [Mt 22,40]. É este nosso fruto, e o Senhor nos deu um preceito quanto a este fruto ao dizer-nos: “o que vos mando é isto: que vos amais uns aos outros” [Jo 15,17].
Quando o apóstolo Paulo queria recomendar os frutos do Espírito em oposição às obras da carne colocou em primeiro lugar, à maneira de cabeça, este: “o fruto do Espírito é a caridade”. Só depois enumerou os demais, nascidos e intimamente ligados à cabeça: “a alegria, a paz, a longanimidade, a benignidade, a bondade, a fé, a mansidão e a continência”.
Como pode alegrar-se convenientemente quem não ama o bem de onde procede a alegria? Como se pode ter verdadeira paz, senão com aquele a quem, verdadeiramente se ama? Como se pode perseverar no bem com longanimidade se não se ama com intensidade? Quem pode ser benigno se não ama aquela a quem corre? Quem pode ser bom se não se torna bem pela prática do amor? Quem pode ter uma fé efetiva se a caridade não faz que a mesma se acompanhe de obras? Quem pode ser utilmente manso, se o amor não moderar a ira? Quem pode conter-se e não praticar a torpeza se a caridade não o levar a amar a honestidade?
Razão tinha o bem Mestre para encarecer tanto a caridade como se fosse o seu único mandamento. Sem a caridade os outros bens não são proveitosos. Mas a caridade, por sua vez, não pode existir sem os outros bens, pelos quais o homem se torna bom.
DO COMENTÁRIO AO SALMO 125
Vemos às vezes que um rico é pobre, e o pobre pode oferecer-lhe enpréstimos. Eis, chega alguém à beira de um rio, e quanto tem de posses tem de delicado: não conseguirá atravessar; se tira a roupa para nadar, teme resfriar-se, adoecer, morrer... Chega um pobre, mais robusto e preparado. Ajuda o rico a atravessar, faz esmola ao rico.
Portanto, não se considerem pobres somente os que não têm dinheiro. Observe cada um em que é pobre, porque talvez seja rico sob outro aspecto e possa prestar ajuda. Talvez possas ajudar alguém com teus braços e até mais do que se o ajudasses com teu dinheiro. Aquele lá precisa de um conselho e tu sabes dá-lo; nisto ele é pobre e és rico, e então nada tens a perder- dá-lhe um. bom conselho e faz-lhe tua esmola.
Neste momento, irmãos, enquanto falo convosco, sois como mendigos diante de Deus. Deus é quem nos dá, e nós damos a vós; todos recebermos dele, o único rico.
Assim procede o corpo de Cristo, assim se entrelaçam seus membros e se unir, na caridade e no vínculo da paz: quando alguém possui e sabe dar a quem não possui. No que tens, és rico; e é pobre quem não tem isso.
Amai-vos pois, e querei-vos bem. Não cuideis apenas de vós iremos, pensai nos precisados que vos rodeiam. E embora isto acarrete fadigas e sofrimentos, nesta vida, não percais a coragem: semeai nas lágrimas, colhereis na alegria. Pois não é assim, irmãos meus? O agricultor, quando lavra a terra e põe as sementes, não está às vezes receoso do vento frio eu da chuva? Olha o céu e o vê ameaçador; treme de frio, mas vai em frente e semeia, pois receia que, esperando um dia sereno, passe o tempo e já não possa semear. Não vossas boas obras, irmãos! Semeai no inverno, semeai boas obras iremos quando chorais, pois 'quem semeia nas lágrimas, colhe na alegria" [Sl 125,5].
ESTÊVÃO, DIÁCONO E PROTOMÁRTIR
At 6, 8-12; 7, 1-2a.51-60
A paixão do Protomártir foi semelhante à de seu Senhor e Salvador
Ouvistes durante a leitura o modo como o grande Santo Estêvão alcançou a coroa suprema. O primeiro mérito do Protomártir é justamente este: enquanto dos outros mártires temos dificuldade em encontrar atos que se possam recitar em suas festas, a paixão de Estêvão encontra-se num livro canônico. Efetivamente, os Atos dos Apóstolos pertencem às Escrituras canônicas. Na leitura, ouvistes como foram escolhidos e ordenados pelos apóstolos sete diáconos, entre os quais estava Santo Estêvão. Os apóstolos ocupam o primeiro lugar; em seguida, vêm os diáconos. Mas, o primeiro mártir foi um diácono e não um apóstolo: a primeira vítima foi um cordeirinho, não um carneiro.
Como é grande a semelhança de seus sofrimentos com os do seu Senhor e Salvador! Contra ambos se levantaram falsas testemunhas, e sobre o mesmo assunto. Vós bem sabeis o que as falsas testemunhas afirmaram contra Cristo Senhor: Este homem declarou: “Posso destruir o Templo de Deus e edificá-lo depois de três dias” (Mt 26, 61). Todavia, o Senhor não dissera isso, mas quiseram fazer a mentira passar por verdade. Em que foram falsas as testemunhas? Elas o tinham ouvido dizer: Destruí este templo, e em três dias eu o levantarei (Jo 2, 19). O evangelista, porém, explica: Ele falava do templo do seu corpo (Jo 2, 21). Eram testemunhas falsas porque afirmavam que Jesus havia dito: “Posso destruir”, ao invés de: “Destruí”. Muito pouco alteraram as sílabas, mas foram tanto mais pérfidas em seu falso testemunho, quanto mais quiseram aparentar verdade em sua calúnia.
O que Estêvão fez em sua humildade, Cristo já o fizera em sua grandeza: o que ele padeceu inclinando-se para o chão, Cristo já o suportara suspenso no madeiro. Recordai o que ele disse: Pai, perdoa-lhes: eles não sabem o que fazem (Lc 23, 34; cf. At 7, 60). Sentado na cátedra da cruz, o Senhor ensinava a Estêvão a regra da piedade.
Bom Mestre, falaste bem, ensinaste bem. Eis que teu discípulo ora por seus inimigos, ora pelos que o apedrejam. Mostra como deve o humilde imitar a ti, o excelso; como deve a criatura imitar o Criador; a vítima, o Mediador; o homem, o Homem-Deus. Imitar o que é Deus, todavia homem sobre a cruz. Imitar a Cristo que é Deus, mas também homem sobre a cruz, quando clamava em alta voz: Pai, perdoa-lhes: eles não sabem o que fazem.